quinta-feira, 27 de março de 2008

Amante Teatral (dia mundial do teatro)

Sei onde cresceu, não sei como surgiu. Num instante era Ele e nada mais, sem um motivo uma justificação. Uma forte convicção, talvez a única certeza que na vida esculpi com vontade e sem levantar razões. Era, é, mais forte a razão da força à força da razão. Não sabia escrever e já misturava tecidos ao corpo como composição de um guarda-fato fora de formato e tamanho, num personagem que nem sabia o que seria. Fechei tantas vezes a porta do quarto falando meticulosamente palavras de improviso. Anotei um espelho a batôn com indicações, pensava eu, serem importantes para Ele. Coloquei a máscara do corpo morto com o sorriso enorme da transformação ingénua.
Um dia sem já pensar, sem equacionar era hora de partir “não sei o motivo para ir só sei que não posso ficar” cantava o rádio a Mafalda Veiga enquanto fazia as malas. No mesmo momento de partir aprendi a amar. Era a chave, qualquer coisa que parta deixa outra para trás. Assim foi e será sempre que Ele continuamente faça-me mover em direcções de novos sentidos. Por Ele, fica outro para trás.
A primeira audição e tinha a pele em estado sísmico de açorianidade teatral…
Tantas vezes uma primeira…
As lágrimas no palco segredadas ao palco sempre tiveram a força de Antígona e o amor Shakespeariano. As gargalhadas foram sempre glórias de baleeiro e o cheiro, o cheiro é o doce veneno desta multiplicidade que engana e reforça a necessidade de não parar.
Sentei-me tantas vezes no centro do palco falando plateias vazias enquanto técnicos montam projectores, uma bainha ainda se levanta ou actores falam da maquilhagem ou meias que compraram. Sentei-me tantas vezes no centro do palco para mergulhar no mar “da minha montanha”. Sentei-me tantas vezes no centro do palco para lamber o pó e beber a historia das historias de um palco. Sentei-me tantas vezes apenas por sentar, apenas por precisar, apenas porque existe.
Da menina à senhora, da leprosa à mais bonita, elas violaram-me tantas vezes a alma com ânsia de existirem: as personagens, e tantas vezes deixei violarem-me com a ânsia de ressuscitar.
Livros. Textos. Ecos. Propostas. Improvisos. Pó de arroz. Nú. Cabeleira. Boneco. Tenda. Beijo. Critica. Cartaz. Ensaio. Fome.
Fome de mais querer e fome de ter para dar.
Os outros já me deixaram, aos outros também deixei. Por Ele perdi e com Ele permaneci. A Ele confesso o que aos outros minto. Bateu-me, aplaudiu-me, chorou-me, matou-me, reanimou-me e sobrevive-me.
Ele é o meu pior amante. As noites de paixão fortes e as crises reconciliadas. Continua a saber a mel o beijo da estreia e o estalo do primeiro ensaio.
Uma folha vazia e um palco vazio. E eu sou a caixa negra que suporta a metamorfose ou a Mascara Neutra, o Clown, a comédia Dell´art ou a tragédia.
Perdida ou encontrada. Amada ou (dês)amada. Estarei sempre sentada no meio do lugar sagrado, olhando cadeiras vazias com a certeza que assim, estou sempre apaixonada.
Teatro.

1 comentário:

Mar de Bem disse...

Estou estupefacta com a maturidade e talento que a Carolina revela nos seus textos. BRAVO!